Músicas de Raphael

sábado, 16 de outubro de 2010

Letras

Já escrevi uma vez sobre minha dificuldade de pensar em português.

Depois de morar nos Estados Unidos e na Dinamarca, e atualmente estar morando na Suécia, por um bom tempo eu só pensava na minha língua materna quando estava assistindo futebol, vendo algum filme brasileiro, ou ouvindo música brasileira. Agora melhorei um pouco. E de qualquer jeito, conhecendo a minha pessoa, alguns diriam que eu não deveria ter problemas, pois faço essas coisas mais do que qualquer outra. 

Mas enfim, não é bem sobre isso que quero escrever.


Por acaso, há alguns minutos atrás, estava checando meu facebook, quando vi o update de um amigo que terminou me levando ao vídeo de uma banda brasileira (recifense?) com um tal de "Johnny Hooker". Bem, o primeiro pensamento mesmo foi "pô, o cara num arranja nem seu próprio nome artístico" (vide John Lee Hooker); o segundo, ao assistir o vídeo, foi "...e já existe um Mick Jagger no mundo"; e o terceiro, depois de ter terminado de assisti-lo e cruelmente julga-lo, foi algo que passei mais tempo pensando: escrever e cantar em inglês.
Não posso dizer com 100% de certeza, mas me parece que as músicas foram escritas pela banda dele, e elas são todas na língua do Tio Sam.

Há um bom tempo atrás, ao ler o encarte do disco do Caetano Veloso de 1971 - o primeiro que ele gravou em Londres durante seu exílio -, me deparei com essa citação: ""Um santo francês certa vez disse que é tão perigoso para um escritor experimentar escrever numa nova língua como para um religioso experimentar uma nova religião: ele pode perder sua alma." Logo me lembrei que, ao longo de uma época, eu mesmo escrevia em inglês.

Audácia que começara alguns meses depois d'eu me mudar pra Flórida em 2003, quando deixei a tristeza de lado, me empolguei com Shakespeare e Walt Whitman, e comecei a tentar escrever meus próprios versos naquele novo idioma.
Lembro que emprestava as palavras mais complicadas, absurdas, (e menos usadas) da língua inglesa, e tentava escrever sobre os assuntos mais banais possíveis. Afinal, eu só tinha 16 anos.

Ainda assim, levei o que tinha escrito pra uma das minhas professoras na Marjory Stoneman Douglas High School, e me surpreendi ao ouvir ela dizer que os versos não faziam sentido algum. Abalado, esperei pela próxima aula, e os mostrei a um outro professor, nativo de Trinidade e Tobago, que por sua vez achou tudo aquilo genial. Ele me elogiou e me incentivou muito, o que fez com que eu continuasse trazendo mais e mais versos a cada dia, inicialmente pra que ele os corrigisse, mas depois, ao ouvi-lo dizer que poesia é subjetiva e corrigi-la pode ser um erro, passei a trazê-los só para compartilha-los com alguém mesmo.

Nunca deixara de escrever em português, mas desde então a frequência com a qual eu o fazia era menor.  Blogs, livejournals, e novos amigos, todos eram em inglês.

O tempo passou, e eu esqueci um pouco o escrever para ler, e comecei a escrever para cantar.

Ao descobrir Beatles, fiquei tão fascinado com suas canções, que comecei a tentar escrever as minhas. Não que não tivesse tentado antes, pois lembro bem das canções de black metal que escrevia e gravava em meados de 2002, e até antes disso já havia me aventurado no mundo de cantor/compositor (minha família talvez se lembre de mim pequenininho, pegando o violão do meu pai, batendo nas cordas e cantando "badubadubarrom", que na minha cabeça era um grande jacaré que se aventurava nos rios de não-sei-onde). Mas no início de 2006, pela primeira vez na Dinamarca, comecei a me levar mais a sério. Escrevia canções mais estruturadas, e começava a grava-las como podia. Até depois de voltar temporariamente ao Brasil na metade daquele ano, continuava escrevendo, tocando, gravando, e sonhando.


Eram todas psicodélicas, lo-fi, e em inglês. Não lidavam com temas específicos, às vezes não faziam sentido algum (propositalmente), mas eram inspiradas em coisas que aconteciam no meu dia a dia. Por exemplo, a minha canção Honeymoon:


"Strumming my guitar like you strum the pink sun 
is not enough to reclaim my loved one"  

Que significa "dedilhar meu violão como você dedilha o sol cor-de-rosa não é o suficiente para recuperar a minha amada."

E a canção Apple Man and the Hat on his Head:


"Apple man and his hat
Stalking me in my bed
Grit his teeth made of juice
Lock me up in my snooze"

 
Que significa "Homem-maçã e seu chapéu, me olhando na minha cama, range seus dentes feitos de sulco, e me tranca no meu cochilo" (inspirada na pintura de Magritte).

Hoje, quando traduzo isso que escrevi há 2-4 anos, me pergunto porque não o fiz em português. De primeira assim, a tradução não rima bem como rima na versão original, mas não é nada que eu não pudesse ajustar. Além do mais, bandas como os Mutantes provam que esse gênero musical funciona muito bem na nossa língua.
Contudo, não só a idade, como também o fato de que eu praticamente não morava no Brasil, me faziam querê-las numa língua que gringos entendessem.

Esse é um caso comum entre todos os não-americanos, não-ingleses, não-australianos, não-jamaicanos, etc, etc, etc.
 
Shakira talvez seja o maior e mais recente exemplo de alguém que um dia cantou em sua língua nativa (castelhano), mas ao perceber as possibilidades econômicas existentes fora da América Latina, aprendeu e passou a cantar quase somente em inglês. De certo modo, digamos que seja como vender a alma ao diabo.
E nem precisamos ir tão longe pra achar mais exemplos: No Brasil, temos o próprio já citado Caetano Veloso, que gravou aqueles dois discos em inglês no início da década de 70; Gilberto Gil, que fez o mesmo no seu exílio; o grande Milton Nascimento, que também gravou discos no exterior com algumas músicas em inglês; e, claro, o mestre Tom Jobim, que teve várias letras de Vinícius de Moraes re-escritas para atingir o público norte-americano.

E não é só um fenômeno latino. Na Dinamarca, a maioria das bandas/músicos de pop, rock, etc, escrevem e cantam em inglês. Exemplos são Tim Christensen, Kashmir, Mew, The Raveonettes. E não podemos esquecer os meus novos vizinhos suecos, Abba.

Eu diria que existem ao menos três razões para que isso aconteça:

  1.  O interesse econômico. Há muitos anos o inglês se tornou a língua mais internacional do mundo, aquela que todos que querem se comunicar com estrangeiros aprendem. Então se você quer que mais gente no mundo ouça sua música e compre seu disco, escreva em inglês e supostamente já terá dado um passo mais perto do sucesso.É o caso de Shakira.
  2. Parecido com a primeira razão, mas com o interesse econômico fora do foco principal: a integração social. Você passou a morar em outro país, e por isso quer comunicar sua arte numa língua que o povo de lá entenda, não só pra poder vender, mas também pra ser simplesmente ouvido (no sentido mais literal do verbo). Seria talvez o caso de Caetano, Gil, e de Manduka, que escreveu em castelhano durantes seus anos nas terras vizinhas do Brasil e no México.
  3. Tempos modernos: parte dos jovens de hoje, cercados pelo idioma, canta em inglês porque é isso que ouviu na adolescência, e mesmo que eles não domem a língua por completo, conseguem se virar.  É provavelmente o caso de várias bandas dinamarquesas, brasileiras, e em certo grau, era o meu caso.  

E vejam bem, eu não estou aqui tentando explicar o fenômeno do inglês no mundo, ainda mais porque não tenho conhecimento suficiente para fazê-lo, e não tenho vontade alguma. Sei bem que ele não se limita à música: muito pelo contrário. Mas não é isso que estou discutindo. E minhas idéias são na maioria baseadas no que vivi nesses 23 anos.

O que é estranho pra mim é que tem muita gente que pensa que inglês é a única língua musical do mundo, e que algo escrito de outra forma não é tão legal.
 
Tudo bem se você é fã de rock e acha que inglês é a língua mais apropriada. Eu te diria que você é um mamão, mas tudo bem. Sim ou não, quantas vezes já não ouvi dinamarquês dizendo que sua língua é feia, e que qualquer música cantada nela é a coisa mais brega do mundo. Um erro triste, confundido com a simples verdade de que a Dinamarca poucas vezes produziu música boa (rs). E isso acontece no Brasil também, especialmente entre os mais jovens (dos quais já fui parte). São mentes fechadas para coisas novas.

E não é somente questão de gosto musical. Eu já mostrei música brasileira (sem ser rock) pra estrangeiros (que não são roqueiros) que disseram "gostei, mas não entendi nada", e logo se desinteressaram. Pelo menos na Dina, onde a maioria entende inglês o suficiente pra saber sobre o que se canta, existe esse conceito de "não entendo, logo não gosto", com relativamente poucas exceções.

Eu, Raphael, cresci num país onde inglês era presente, sendo que só na TV e no rádio. Ou seja, sem entender nada, aprendi a gostar do que ouvia pela melodia. Cantarolava o que fosse, não me importando com o que era cantado.     

Não que eu desdenhe letras de forma alguma, mas o que mais me interessa numa música não é o que cantam, mas como cantam. Se eu gostar de uma música e desgostar de sua letra, ainda assim vou ouvi-la, mas não o contrário. Por isso me identifico muito com cantores como Milton Nascimento e Dori Caymmi (o filho), que muitas vezes abandonaram letras em nome da melodia pura. É algo que venho fazendo em algumas composições mais recentes. E, felizmente, não é algo somente meu e do meu povo: a banda islandesa Sigur Rós, antes de mergulhar num mundo mais pop, compôs músicas e chegou a gravar um disco inteiro sem letras ou títulos, usando as vozes como instrumentos, algo que quebrou a barreira idiomática e os levou a grande sucesso internacional. Hoje em dia, eles já começaram a gravar músicas até em inglês, pois acho que ficaram famosos demais, mas mesmo assim, valeu o esforço. 



Cantar em inglês não é errado, ouvir música em inglês menos errado ainda. Eu não acho que estava errado ao fazê-los, e cheguei até ser contactado por um promotor britânico que queria usar músicas minhas numa coletânea inglesa (que cobrava caro demais), e também recebi uma boa crítica da revista dinamarquesa Gaffa, que me comparou à Syd Barrett e clamou que eu era a melhor música pop psicodélica já feita no país. Então eu posso dizer que o meu objetivo estava sendo alcançado.

Amostração à parte, eu não posso negar que uma razão fundamental por trás de todo o meu inglesacionismo, era o fato de que cantar em português me despia. Cantar na minha língua me colocava cara-a-cara com todos aqueles que conheci e conheço desde meus primeiros anos de vida, aqueles que me conhecem pra valer. Era como convida-los para entrar na minha mente, naquilo que sou, apesar de todas as mudanças naturais da vida. Enfim, me envergonhava. E acho que acontece o mesmo com muitos outros músicos e compositores por aí.

Outra razão é o fato de que mudei, como sempre estou mudando, e nos últimos 3 anos passei a ouvir mais música instrumental (jazz e seus derivados), mais música de outros países (de idiomas não-ingleses), e especialmente mais música brasileira que tudo. Consequentemente, os meus conceitos mudaram. Agora, prefiro cantar sem letras ou cantar em português, mas não excluo a possibilidade de voltar a escrever e cantar em inglês no futuro, ou até em outra língua. Tudo depende de onde meus ouvidos estarão.

Concordo com o francês em parte: pois se você morar num país tempo suficiente para incorporar sua língua, entendê-la de forma que não a entenderia através de estudos na sua terra natal, e chegar a pensar através dela, acho que sua alma não se perde. Pelo contrário, ela cresce.
Todavia, caso essa seja a escolha, acho importante não deixar de escrever e compor na sua própria língua de vez em quando. Mas essa é a minha opinião.





Quarta passada toquei uma música nova para a minha professora de canto. É uma canção chamada Serra das Russas, sobre o que senti quando fui informado que tinha duas semanas pra deixar a Dinamarca. É uma letra triste e saudosa, mas não que ela fosse entender. E nem precisava, pois ela disse que a melodia já era tão bonita que, apesar de não compreender as palavras, entendia profundamente o que eu queria dizer antes mesmo d'eu explicar.

E é isso que Música é: compreensão profunda e abstrata do que se sente e não se sente, através de notas, não palavras.

Mas convenhamos: palavras ajudam. Especialmente em casos como este:





Minutos depois, minha professora me perguntou se eu não considerara escrever a letra em inglês...

Haha.